sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A Flexão de Músculos Russa


Em meio à dificuldades para passar seu plano de ajuda económica no Congresso americano no plano interno, internacionalmente, o vácuo de liderança no plano internacional deixado pela administração Bush é aproveitado pela Rússia para recuperar (e aumentar) seu prestígio e influência no cenário internacional.

A última ação russa vem complicar ainda mais a vida de Obama internacionalmente. Em visita à Moscow, Kurmanbek Bakiev, Presidente do Quirguistão, anuncia o fechamento da base militar norte-americana no país, esta localizada em Manas, perto de Bishke. A base é única base norte-americana da Ásia Central e chave para operações da OTAN e dos EUAs e chave para operações no Afeganistão, que fica à uma hora de distância.





Tal acontecimento, isoladamente, já seria de grande relevância tendo em vista o entendimento do Presidente Obama, que quer mais tropas e mais envolvimento no Afeganistão. Contudo, somado a outros eventos recentes, demonstra uma flexão de músculos por parte dos russos.
É preciso lembrar por exemplo da recente guerra na Geórgia e o apoio russo a grupos separatistas da região, inclusive reconhecendo formalmente a independência das regiões da Ossétia do Sul e Abkhazia. Faz-se necessário, também, adicionar ao quadro a recente disputa russa com a Ucrânia relativamente ao preço do gás fornecido por Moscou. Fato que deixa a Europa no frio, uma vez que mais de um quarto do gás europeu (fundamental para aquecimento) é proveniente de Moscou, passando pela Ucrânia.

Aliado a isto, está a recente reunião com as antigas repúblicas soviéticas presidida pelo Kremilin em uma tentativa de recuperação do prestígio e influência sob estas, assim como um sinal claro para os norte-americanos de que esta ainda é uma área de influência de Moscou. Além disso, soma-se a ajuda russa ao projeto nuclear iraniano, assunto delicadíssimo para os EUAs, e a batalha para evitar a colocação de mísseis norte-americanos na Europa Central.

Em um cenário internacional onde a crise económica atual é a pauta da agenda, o Presidente Obama e sua Secretária de Estado Hillary Clinton, precisam rapidamente recuperar terreno caso desejem uma liderança efetiva dos EUAs. É preciso uma estratégia rápida e inteligente de engajamento russo na solução dos problemas internacionais. Um sinal do possível caminho a ser percorrido pelo Presidente Obama foi a recente ideia de propor à Rússia um plano de redução mútua do armamento nuclear. É de se observar.

Contudo, fica clara a grande perda de influência dos EUAs no cenário internacional na administração Bush. Fato que abre largo espaço para a ascensão de países emergentes. A Rússia, ressentida e nostálgica dos tempos de grande potência agradece.





















segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

State-building: Um Olhar Crítico


Abaixo, texto reprodução do texto publicado neste mês na Revista Autor.
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Ao se observar e analisar o cenário internacional, fica cada vez mais claro e patente o crescente aprofundamento do envolvimento da ONU relativamente à conflitualidade internacional ao longo do século XX e XXI[1]. O modelo de reconstrução pós-bélica e construção da paz (peacebuilding) onusiano é atualmente central, existindo inclusive um comum entendimento entre os diversos atores envolvidos em tal empreitada no tocante aos métodos, instrumentos empregados e no tipo de paz visualizada[2] (Richmond, 2004).

Esta resposta aos diferentes conflitos espalhados pelo globo nada mais é do que um mecanismo uniforme de resolução dos mesmos (Clapham, 1998), um instrumento único genericamente aplicado às diversas conflitualidades sendo inclusive apelidado por Ramsbotham de “procedimento operacional padrão” (2000: 170). Dentro desse modelo, o presente ensaio se concentrará na dimensão político-constitucional[3], o state-building, dada a sua centralidade em qualquer operação de paz das Nações Unidas (Brahimi, 2007), sendo estas, muitas vezes, medidas em termos de state-building (Manning, 2003). Trata-se o state-building de uma fase de construção de instituições políticas (Bickerton, 2007), da criação de instituições governamentais eficientes e legítimas (Paris e Sisk, 2007), para que estas sejam dotadas de instrumentos de governação capazes de prover segurança física e económica à população em questão (Chandler, 2006).

Neste ponto, é notória a centralidade e fundamentação do modelo em um tipo de governação, a democracia-liberal, lógica patente, por exemplo tanto na Agenda para a Paz, quanto no Relatório Brahimi (UN, 1992, 2000). Dessa forma, a paz faz-se intimamente ligada à institucionalização desse tipo de governação. Esta, altamente baseada em um entendimento liberal dos papéis das instituições (Richmond, 2004). Aqui é percebida não somente a forma de governação como alicerce da paz[4] e o estato-centrismo do modelo, mas principalmente, a transposição das lógicas estruturantes de um tipo específico de governação política/econômica do centro para a periferia do sistema internacional (Ibid 2004). É o que Paris, por exemplo, chama de a “mission civilizatrice moderna” (Paris, 2002: 638).

O olhar crítico e atento à dinâmica do state-building no cenário internacional percebe claramente a profunda violência na qual assenta-se tal modelo. Percebe nesta dinâmica uma (re)engenharia social baseada na transferência de valores e ideias de mundo ocidentais para locais em conflitos, uma “pacificação por meio da liberalização política e económica” (Paris, 1997: 56). Pacificação esta que ganha cada vez mais robustez com a força imensa adquirida pelo modelo no pós Guerra Fria, quando a tal receita democrática-liberal emerge como vitoriosa. Fato que permite assim a sua aplicação pelo mundo (Clapham, 1998).

Contudo, tal violência não é praticada de maneira aberta e exposta. Neste contexto, destaca-se a imensa despolitização desse processo. Apesar da profunda dimensão ideológica subliminar aos pressupostos do modelo, este é apresentado como uma resposta administrativa/burocrática (Bendaña, 2004), como se este pudesse passar, sem problemas, ao lado da sustentação popular (Chandler, 2005). Assim, um problema essencialmente político é transformado em um problema meramente técnico, sendo resolvido portanto por soluções técnicas (Bickerton, 2007).

Ao passar ao lado da esfera pública e sustentação popular, o statebuilding acaba criando instituições com fraca sustentação política e social (Bickerton, 2007), além de pouco (ou nada) legítimas. Desse modo, são criados “Estados fantasmas”, onde os mesmos existem no papel, em termos jurídicos, contudo não são entes políticos independentes, possuidores do auto-governo. Apesar de possuírem alguma governação e instituições, não vistos como incorporadores da vontade política de suas sociedades, tendo portanto a esfera política atrofiada Sendo estes, portanto, consequência direta da abordagem tecnicista, burocrática e administrativa do statebuilding (Chandler, 2006: 44-46). Ao criar Estados altamente dependentes do suporte externo para sobreviverem, o statebuilding passa a ser um processo de state failure (Bickerton, 2007: 100).

Esta dinâmica para ser justificada e legitimada aos olhos da comunidade internacional necessita do suporte, primariamente, de dois outros conceitos. O primeiro passa pela construção conceitual e atuando no âmbito justificativa da dinâmica e o segundo passa por uma desconstrução, ou adaptação, conceitual e atuando no tocante a legitimação da dinâmica. São eles os conceitos de Estados Falidos e soberania[5].

É cada vez mais evidente a narrativa de que Estados com fraca governação interna[6] são colocados como fonte de ameaças à segurança internacional[7], ao contrário do que ocorria no passado, quando as maiores turbulências à paz internacional eram esperadas de Estados fortes e agressivos (Bickerton, 2007). Nesse contexto, o statebuilding é visto como central no tocante à respostas à insegurança internacional (Chandler, 2006).

Para ter sentido e legitimidade, o statebuilding não pode ser reconhecido como uma intervenção externa direta e para tal um novo suporte teórico de soberania faz-se necessário. É Chandler, por exemplo, quem chama a atenção que o entendimento do state-building em termos altamente tecnicista e funcionalista passa por uma profunda problematização de perspectivas tradicionais de soberania. Esta passa então, a não mais ser entendida como auto-governo, mas sim, como uma mera capacidade (2006).

Dessa forma, ao ser (re)interpretada como capacidade, a soberania pode ser isolada das sociedades em questão e colocada nas mãos de entes externos (Bickerton, 2007). Nesse ponto, o olhar crítico observa a construção de formulações conceituais como “neo-trusteeship”, “pooled sovereignty”, ou “shared sovereignty” (Fearon e Laitin, 2004; Keohane, 2002; Krasner, 2004 apud Chandler, 2006: 40) que surgem como o alicerce e máscara teórica da intervenção externa. Com tal sustentação, o discurso mainstream do state-building não somente o retrata como legítimo, mas principalmente, como um mecanismo de fortalecimento dos Estados periféricos por parte do centro do sistema internacional. Algo que vem aumentar a capacidade e independência dos Estados periféricos (Chandler, 2006)

Apesar de óbvia para o olhar cuidadoso, toda essa intervenção e violência não são realizadas de forma desmascarada, para Chandler, o império está em negação[8]. Está em negação não por pouco regular e intervir[9], mas sim, pelo fato do centro político decisor internacional mascarar tal intervenção com um tom não-político, terapêutico, administrativo/tecnicista e burocrático (2006). Entretanto a observação crítica vem justamente desmascarar e dar visibilidade à violência que é o processo de state-building. Vem evidenciar que linguagens como “good governance”, “capacity-building”, “empowerment”, “ownership” na verdade simbolizam justamente a linguagem da política desse império em negação.

Nesse sentido, o olhar crítico acertadamente vem colocar à mostra tais mecanismos violentos de relacionamento entre o centro e a periferia. Tarefa esta da mais alta relevância. Difícil, portanto, não concordar com Foucault quando este diz que:
a real atividade política em uma sociedade como a nossa é criticar o funcionamento de instituições que aparentam ser ambos neutras e independentes; critica-las de tal maneira que a violência política a qual sempre foi exercida de maneira obscura por meio destas sejam desmascaradas, para que assim possam ser combatidas[10] (Foucault apud Rabinow, 1984: 6).

Assim, fica notório que a real mudança das políticas relativas à transformação dos conflitos e à construção de alicerces sólidos para a emergência de uma paz sustentável passa necessariamente por um olhar e pensamento críticos no tocante à reflexão dessas dinâmicas. Passa invariavelmente pela exibição das violências do pensamento ortodoxo e pelo (re)pensar o próprio pensar no tocante a transformação dos conflitos. Dessa forma, um refletir crítico relativamente ao state-building torna-se indispensável.




Referências
Bendaña, Alejandro (2004) "From Peace-building to State-building: One Step Forward and Two Backwards", Presented at Nation-building, State-building and International Intervention: Between “Liberation” and Symptom Relief CERI - Paris 15th October 2004 (http://www.ceinicaragua.org.ni/documento/statebuildingpeace.pdf) [28th October 2008].

Bickerton, Christopher (2007) "State-Building: exporting State-Failure" in Bickerton, Cunliffe & Gourevitch (Ed.) Politics without Sovereignty: a critique of Contemporary International Relations. London: University College London Press, 93-111.

Brahimi, Lakhadar (2007) "State Building is Crisis and Post-Conflict Countries", Presented at Global Forum on Reinventing Government, Building Trust in Government Viena - Austria (http://unpan1.un.org/intradoc/groups/public/documents/UN/UNPAN026305.pdf) [15th May 2008].

Chandler, David (2005) "Introduction: Peace without Politics?" International Peacekeeping. 12 (3), 307-321.

Chandler, David (2006) The Empire in Denial - The Politics of State-building. London: Pluto Press.

Clapham, Chistopher (1998) "Rwanda: The Perils of Peacemaking" Journal of Peace Research. 35 (2), 307-321.

David, Charles-Philippe (1999) "Does Peacebuilding Build Peace?: Liberal (Mis)steps in the Peace Process" Security Dialogue. 30 (1), 25-41.

Fukuyama, Francis (2004) State-building: Governance and World Order in the Twenty-first Century. London: Profile Book.

Jackson, Robert (1990) Quasi-States: Sovereignty, International Relations, and the Third World. Cambridge: Cambridge University Press.

Krasner, Stephen D.; Pascual, Carlos (2005) "Addressing State Failure" Foreign Affairs. 84 (4), 153-163.

Manning, Carrie (2003) "Local Level Challenges to post-Conflict Peacebuilding." International Peacekeeping. 10 (3), 25-43.

NSS (2002) "The National Security Strategy of the United States of America" (http://www.whitehouse.gov/nsc/nss/2002/nss.pdf), [1st of November 2008].

Paris, Roland (1997) "Peacebuilding and the Limits of Liberal Internationalism" International Security. 22 (2), 54-89.

Paris, Roland (2002) "International Peacebuilding and the ‘Mission Civilisatrice’" Review of International Studies. 28 637-656.

Paris, Roland (2004) At war's end: building peace after civil conflict. Cambridge: Cambridge University Press.

Paris, Roland; Sisk, Timothy (2007) "Managing Contradictions: the Inherant Dilemmas of Postwar Statebuilding" (http://www.ipacademy.org/asset/file/211/iparpps.pdf), [16th May 2008].

Pureza, José Manuel et al. (2006) "Peacebuilding and Failed States: Some Thoeretical Notes" Oficina do CES nº 256. Julho 1-36.

Rabinow, Paul (Ed.) (1984) The Foucault Reader. London: Penguim Books.

Ramsbotham, Oliver (2000) "Reflections on UN post-settlement peacebuilding" International Peacekeeping. 7 (1), 169-189.

Richmond, Oliver (2004) "The Globalization of Responses to Conflict and the Peacebuilding Consensus" Cooperation and Conflict 39 (2), 129-150.

Richmond, Oliver (2007) The transformation of Peace. New York: Palgrave Macmillan.

Rotberg, Robert (2004) "The Failure and Collapse of Nation-States: Breakdown, Prevention and Repair" in Rotberg, Robert (Ed.) When States Fail: Causes and Consequences. Princeton: Princeton University Press, 1-50.

UKSU (2005) "UK Prime Minister´s Strategy Unit Report, Investing in Prevention – An International Strategy to Manage Risks on Instability and Improve Crisis Reponse." (http://www.cabinetoffice.gov.uk/~/media/assets/www.cabinetoffice.gov.uk/strategy/investing%20pdf.ashx), [1st of November 2008].

UN (1992) "An Agenda for Peace - A/47/277 - S/24111" 17th June 1992, (http://www.un.org/Docs/SG/agpeace.html), [10th November 2008].

UN (2000) "Report of the Panel on United Nations Peace Operations - A/55/305–S/2000/809" 21st August 2000, (http://secint24.un.org/documents/ga/docs/55/a55305.pdf), [13th December 2008].
Zartman, William (1995) "Introduction: Posing the Problem of State Collapse" in Zartman, William (Ed.) Collapsed States: The disintegration and the restoration of legitimate authority. London and Boulder: Lynne Rienner,
[1] Para uma visão do panorama das operações da ONU em suas gerações, ver por exemplo (Paris, 2004: Capítulo 1).
[2] Para uma visão mais profunda no tocante à ideia de paz subjacente ao modelo de peacebuilding da ONU ver por exemplo (Richmond, 2007).
[3] As outras dimensões são: económico-social; militar-securitária; psico-social (Ramsbotham, 2000: 182). Aqui é percebida a inclusão da dimensão psicológica, ponto não abordado, ou abordado tangencialmente em formulações teóricas anteriores, como por exemplo (David, 1999).
[4] Tradição com raízes por exemplo em Kant, quando este atribui como premissa primeira para a Paz Perpétua o republicanismo dos Estados.
[5] Dada a limitação de escopo e objetivo do ensaio, este não entrará em detalhe nas discussões de ambos os conceitos, para tal, ver notas seguintes.
[6] Para algumas formulações teóricas de Estados falhados, ver por exemplo (Jackson, 1990) e (Zartman, 1995). Para um olhar crítico ver (Pureza et al., 2006).
[7] Para enquadramento teórico do fraca governação como fonte de insegurança internacional ver, por exemplo (Fukuyama, 2004; Krasner e Pascual, 2005; Rotberg, 2004). Para respostas políticas ver, por exemplo (NSS, 2002: 1; UKSU, 2005: Sessões 1 e 2).
[8] Tradução livre do autor para o original “empire in denial”.
[9] Para o autor existe inclusive mais regulação e controle ligados à ajuda, comércio e relações institucionais atualmente do que no passado.
[10] Tradução livre do autor. No original: “the real political task in a society such as ours is to criticize the working of institutions which appear to be both neutral and independent; to criticize them in such a manner that the political violence which has always exercised itself obscurely though them will be unmasked, so that one can fight them” (Foucault apud Rabinow, 1984: 6).

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

O Frio Inverno Europeu

Nessa época do ano são registradas temperaturas abaixo de zero na maioria dos países da Europa. Este frio pode ficar ainda mais gelado e o seu combate ainda mais caro com a recente iniciativa russa. Aquecedores começam inclusive a serem desligados em cidades como por exemplo Sarajevo, enquanto as temperaturas externas chegam a por exemplo nos -11º C.

A recente disputa entre Rússia e Ucrânia relativamente ao preço pago por esta pelo gás russo, afeta gravemente o suprimento de gás para a Europa. Ambos os países acusam um ao outro pelo corte do suprimento. E a diplomacia da União Européia, capitaneada por José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Européia, atua na busca de uma solução na disputa entre os dois países. Para Barroso, é necessário o envio de monitores externos para avaliar o fluxo de suprimento dos gaseodutos.







Para a Rússia, a Ucrânia deve pagar não somente o preço de mercado pelo produto, que gira em torno dos € 400, bem acima dos €179 pagos atualmente pela Ucrânia, mas também dividas passadas alegadas por Moscou, por pagamentos atrasados. A UE é especialmente afetada pela disputa, uma vez que 25% do gás importado pela Europa vem da Rússia, sendo a maioria passando pela Ucrânia. Em alguns países europeus, essa dependência sobe inclusive para os 100%.
A pergunta que fica é se isso não seria mais uma sinalização de uma política russa mais endurecida em relação à UE e à Ucrânia. É preciso ter em mente por exemplo recentes declarações de vontade ucraniana de ingresso na UE, um alinhamento cada vez maior da Ucrânia com a UE e EUAs, assim como a iniciativa de Bush em querer incluir a Ucrânia por exemplo na OTAN. Obviamente, fatos que desagradam e desagradaram bastante a diplomacia russa. Vale ficar de olho no desenrolar dessa disputa.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

O Conceito de hegemonia em Gramsci

Perante a complexidade do mundo actual, uma visão menos estato-cêntrica das relações internacionais se tornou fundamental para a compreensão dos actuais fenómenos tanto nacionais quanto internacionais. É neste sentido que o conceito de hegemonia em Gramsci se enquadra na actualidade. Sem dúvida que António Gramsci foi um dos filósofos que mais contribuiu para a moderna concepção de hegemonia enquanto parte fundamental das ciências sociais. Neste livro, o sociólogo Luciano Gruppi atenta trazer, e até contribuir, para que a noção de hegemonia seja trazida para o centro das discussões tanto para a organização social nacional, quanto internacional.

Devido as restrições espaciais, juntamente com a complexidade do tema apresentado pelo autor, adoptaremos a seguinte estratégia: num primeiro momento, expor os principais conceitos formadores do conceito de hegemonia em Gramsci;[1] e, em segundo lugar, analisar o impacto empírico deste conceito nos estudos das relações internacionais.

O conceito de hegemonia[2], segundo Gramsci, é complexo, onde sua acepção se baseia nos trabalhos de Marx (essencialmente na relação de dependência entre super-estrutura e estrutura) e, mais precisamente, na actuação de Lênin (no que diz respeito a compreensão deste estadista da luta cultural e politica enquanto factores fundamentais para a manutenção de um determinado grupo no poder – em suma, contra o determinismo económico). Deste modo, Gramsci começa por afirmar que “tudo é política, inclusive a filosofia ou as filosofias; e a única filosofia é a história em ato, ou seja, a própria vida”[3] (p. 1), permitindo-o assim aproximar a teoria com a prática política. E o elo entre política e prática, segundo Gramsci, é justamente o partido político (entendido aqui enquanto formador de consenso).

Esta particular noção e importância atribuída à história – derivada de Georges Sorel – (Cox, 1983), Gramsci concebe a noção de que a interactividade entre a estrutura (económica) e a super-estrutura (política e social) evita o reducionismo económico[4], formando assim o que chama de blocco storico. Para o filosofo, tal conceito tem uma vertente revolucionária (semelhante a revolução encontrada em sua época – e.g., a revolução bolchevique), onde a transformação (trasformismo) desta estrutura formada pelas esferas políticas, sociais e económica somente poderia ser substituída por uma outra capaz de igual ou superior características. Deste modo, não é possível existir um bloco histórico sem a existência de uma classe dominante. Por conseguinte, antes de seguirmos para os mecanismos de manutenção das classes hegemónicas, é fundamental compreender que a noção de poder em Gramsci se divide em “dominação” e “liderança moral e intelectual” (Arrighi, 1993), que remonta a figura mitológica apresentada por Maquiavel do centauro, onde a pratica política se resume a interacção entre coesão e consenso.

No entanto, para que essa classe dominante se mantenha no poder (para além de já “dever” exercer liderança) é necessário que disponha de alguns mecanismos de formação de consenso. Estes princípios estão descritos em sua principal obra Cadernos do Cárcere (Prison Notebooks), que foram feitos aquando sua detenção entre 1929 e 1935. Conforme Gruppi aponta, há vários filões que abrangem tal vasta obra, a relação entre cultura e povo, formação do estado italiano, a história dos intelectuais e sua relação com as massas. Entretanto há uma constante nos trabalhos de Gramsci, toda sua análise parte da compreensão ou derivam da questão de hegemonia (p. 65). A construção da formação intelectual faz parte da essência do conceito hegemonia em Gramsci, assim sendo as classes subalternas tem uma concepção do mundo que é directamente elaborada pelas classes dominantes. Assim sendo, os canais (segundo Gramsci) pelos quais as classes dominantes constroem seu sua influência ideal (ou seja, sua capacidade de difundir seus valores ideais) passam pelo controle da escola, da religião, do serviço militar, dos jornais (imprensa) locais, regionais e nacionais, por manifestações culturais, folclore, etc. Um outro ponto apresentado por Gruppi passa pela compreensão da relação entre de Marx, Maquiavel e Gramsci. Para Gramsci, “a hegemonia não é apenas política, mas é também um fato cultural, moral de concepção do mundo” (p. 73), passando necessariamente por uma reforma intelectual e moral (p. 72). Conforme supra mencionado, o mediador entre política e prática é justamente o conceito de partido político (revolucionário). Este é um factor fundamental para Gramsci, pois para este autor, o partido é o “príncipe moderno”, enquanto elemento unificador, moral e culturalmente. A grande crítica de Gramsci a Marx está fundamentalmente naquilo que Gramsci chama de materialismo vulgar, visão que combate veementemente as deformações do marxismo, entendido como materialismo mecânico. Entretanto não se deve entender que a visão grasmsciana se afasta do marxismo por completo, e nesta obra Gruppi consegue evitar tal percepção errónea. A descrição acima se resume a apresentar os principais elementos do complexo conceito de hegemonia em Gramsci, é crucial entendê-los sob a óptica de formação de classes sociais, inerentes de cada sociedade. A transposição para o internacional deve necessariamente incorporar tais princípios sob um conceito mais abrangente (ou alargado) de Estado.

Ao contrario da visão realista (a view from the top) da política internacional ou seja, onde os Estados têm prevalência nos assuntos internacionais, uma visão gramsciana das relações internacionais integra como parte fundamental do seu discurso as questões de estruturação/organização social (doméstica), essencialmente como difusões de valores ideais e culturais. Uma visão ou entendimento do mundo que tenha como principal escopo analisar as relações internacionais de baixo para cima (bottom-up ou a view from below) deve certamente ter em conta as relações sociais de poder, sua formação e seus instrumentos de manutenção de poder. O legado de Gramsci, concentrado e bem articulado nesta obra, ainda gera efeitos nos actuais pensadores sobre reestruturação e governação global, ordem(ns) mundial(is), tais como Robert Cox, Stephen Gill, Giovanni Arrighi, Robert Bocock, Jonathan Joseph, etc.

Notas

[1] Evidentemente que os conceitos aqui apresentados serão expostos em sua forma mais sumária. Tendo em mente que estes facilmente seriam tópicos de teses, livros, ou capítulos.
[2] O conceito de hegemonia é derivado do grego eghestai (ou hégemonía), que se traduz por “ser líder”, “ser guia”; “acção de guiar” (Houaiss 2001).
[3] Grifo do autor.
[4] É justamente a partir desta dialéctica entre o reducionismo económico (ou determinismo mecânico, segundo Labriola) que permite Gramsci edificar seu conceito de hegemonia. Robert Bocock advoga que estas acepções são importantes para uma análise metodológica (para que seja viável sua análise teórica). Neste sentido, Gramsci não exclui a vertente económica, mas sim dá mais valor às questões culturais, políticas e sociais do cenário interno dos Estados (Bocock, 1986).



Referências

Arrighi, Giovanni (1993), ‘The three hegemonies of historical capitalism’ in Gill, Stephen ed. (1993), Gramsci, historical materialism and international relations, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 149-185.

Bocock, Robert (1986), Hegemony, London: Routledge.

Cox, Robert W (1983), ‘Gramsci, hegemony and international relations: an essay in method’ in Gill, Stephen ed. (1993), Gramsci, historical materialism and international relations, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 49-66.

Gill, Stephen (1993), ‘Gramsci and Global Politics: toward a post-hegemonic research agenda’ in Gill, Stephen ed. (1993), Gramsci, historical materialism and international relations, Cambridge: Cambridge University Press, pp 1-18.

Gill, Stephen (1993), ‘Epistemology, ontology and the “Italian School”’ in Gill, Stephen ed. (1993), Gramsci, historical materialism and international relations, Cambridge: Cambridge University Press, pp 21-48.

Houaiss, Instituto Antônio. 2001. "Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa." 1.0 Edition: Editora Objetiva Ltda.

Joseph, Jonathan (2002), Hegemony: a realist analysis, London: Routledge.

Joseph, Jonathan (2008), ‘Hegemony and the structure-agency problem in International Relations: a scientific realist contribution’ in Review of International Studies, vol. 34, pp.109-128.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Ensaio Sobre a Cegueira


Estreia nos cinemas portugueses o filme Ensaio sobre a Cegueira de Fernando Meireles. O diretor de “Cidade de Deus” e “Jardineiro Fiel” baseado na obra do Nobel português José Saramago realiza um excelente filme.

Uma cidade é assolada por uma epidemia repentina e inexplicável. Uma pessoa no meio do trânsito alega ter ficado cega de uma hora para outra. Ao consultar médico e especialistas, vê que não existe nada fisicamente errado com seus olhos e volta para casa. No dia seguinte, mais e mais pessoas começam a ter a cegueira e de uma maneira inexplicável todos vão ficando cegos.

Para evitar mais contágio da misteriosa epidemia, o governo coloca os infectados em quarentena em um hospital velho e abandonado. Estes, são monitorados por guardas fortemente armados que os impedem de saírem do hospital. Logo, este está lotado e o sentido de sobrevivência vem à tona e o grupo entra em colapso. Primeiramente é feita uma divisão entre diferentes divisórias de camas, onde rapidamente percebe-se o tomar de lideranças, de que forma estas são respeitadas e criação de processos decisórios dentro dos diferentes grupos.

Em um ambiente assim, obviamente a briga pela comida será feroz e que controla esta controla todo o hospital. Rapidamente percebe-se a diferença de necessidades e de violências sofridas por homens e mulheres. Uma dessas, misteriosamente, não está cega e fingiu-se assim para ficar ao lado do marido, o médico. Ao ser a única que vê, a mulher do médico, possui papel central no grupo.

É um filme particularmente interessante para quem possui alguma sensibilidade para as Relações Internacionais, resolução de conflitos e questões de género. É um filme onde pode-se perceber claramente pontos como a “governamentabilidade/bio-política” de Foucault, ou o escalar e (d)escalar de um conflito, resolução pacífica (ou não) destes, assim como as diferenças vividas por homens e mulheres.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O Império em Negação: As Políticas de Construção de Estados


É cada vez mais urgente um pensamento crítico referentemente às dinâmicas e políticas ocorridas no cenário internacional. Neste contexto, insere-se o olhar crítico e preciso de David Chandler no tocante ao state-building. Para Chandler, este trata-se da “construção ou reconstrução de instituições de governação capazes de prover os cidadãos com segurança física e económica”[1] (Chandler, 2006: 1) e é uma das questões políticas mais relevantes enfrentadas pela comunidade internacional atualmente. Questão presente, para o autor, não somente no pensamento pós-bélico, mas sim em qualquer relacionamento de Estados Ocidentais com não-Ocidentais. Dessa forma, desnudar a violência subliminar à esta prática é indispensável e aqui centra-se a presente obra.

A construção argumentativa da obra divide-se nomeadamente em três partes. A primeira delas foca nas dinâmicas de formulação de políticas Ocidentais. Aqui, além de mapeadas as diferenças e continuidades no tocante ao state-building em relação às políticas intervencionistas da década de 90, é analisada a problematização conceitual da soberania. Ainda nesta parte, outros dois pontos importantes são trabalhados: o privilégio da governação sobre o governo, no tocante às políticas de state-building; assim como a construção discursiva que separa o poder de sujeitos políticos, para que assim a negação do império ser sustentada.

Na segunda parte, à luz dessa dinâmica, é dada ênfase ao processo de alargamento da União Européia e a regulação externa na Bósnia. Este, para o autor, experimento chave, referente ao state-building internacional. Na terceira parte, Chandler observa mais atentamente o impacto das técnicas utilizadas dentro do state-building no campo. Analisa nomeadamente as práticas de anti-corrupção e aplicação da lei, e como estas enfraquecem o relacionamento entre as instituições estatais e suas sociedades. Posteriormente, segue o capítulo conclusivo de Chandler.

Nesse debate referentemente ao statebuilding é possível verificar claramente, diferentes vertentes teóricas. No campo mais ortodoxo nota-se, por exemplo Fukuyama vendo o state-building como dinâmica central no cenário internacional, dado que são os Estados fracos as fontes das diversas ameaças à segurança internacional (2004), ou então Rotberg, que vê no state-building um dos imperativos morais/estratégicos mais críticos de nosso tempo (2004). No plano crítico, aquele que enxerga nessa dinâmica uma forma de dominação/regulação, percebe-se duas vertentes. Chandler, parafraseando Cox[2], enxerga as críticas problem-solving, apolíticas e centradas na tecnicidade da questão, onde enquadra por exemplo a “institucionalização antes da liberalização” de Paris[3]. Na vertente mais crítica, é realizado um esforço para perceber porque o state-building tornou-se tão central na agenda Ocidental, além de enxergar os discursos envolvidos na aplicação desse dispositivo. Neste âmbito, enquadra-se a presente obra de Chandler assim como, por exemplo, o state-building exporting state-failure de Bickerton (2007).

Chandler expõe logo inicialmente como a idéia de fortalecimento da capacidade estatal é chave para o discurso das políticas de desenvolvimento. Mostra também, como o state-building é colocado no centro da narrativa de segurança internacional atual, que vê nos Estados com fraca governação interna, fontes de ameaça à segurança global. Ponto este, também ressaltado por Bickerton ao notar que o state-building passa a ser visto como necessário para manter a ordem internacional, pois ao contrario do que ocorria no passado, a construção narrativa da fonte de insegurança internacional passa não mais pelos Estados fortes e agressivos mas sim pelos fracos (2007: 94). Assim, o foco no fortalecimento da governação interna encaixa perfeitamente tanto com o discurso securitário quanto com o desenvolvimentista.

Para Chandler, essa lógica tecnicista e funcional no tocante à intervenção externa relativamente à capacitação estatal vem acompanhada de perto por uma problematização conceitual da soberania. Esta deixa de relacionar-se com o auto-governo e autonomia política para ser atenuada e até mesmo dividida em diferentes atributos. Dessa forma, formulações conceituais como “neo-trusteeship”, “pooled sovereignty”, ou “shared soverreignty” (Fearon e Laitin, 2004; Keohane, 2002; Krasner, 2004 apud Chandler, 2006: 40) surgem como sustentação teórica da intervenção externa. Assim, esta não somente é legitimada, mas principalmente é vista como positiva, como um fortalecimento dos Estados periféricos (Chandler, 2006).

Outro ponto ressaltado é a elevada despolitização do processo. Aqui, Chandler problematiza, por exemplo, como questões políticas passam ao lado da sustentação popular e da esfera pública e política. Problemas essencialmente sociais, económicos e políticos são abordados por soluções técnico-administrativas. Consequentemente, o state-building acaba criando instituições com pouca legitimidade/representatividade. Assim, o state-building produz “Estados Fantasmas”, que possuem tecnicamente alguma governação e instituições no papel, mas não são a incorporação da vontade política de sua sociedade e possuem, portanto, a esfera política atrofiada. Ideia esta, similar ao ponto de state-building como processo de state-failure colocado por Bickerton (2007).

Contudo, toda essa intervenção não é realizada de forma aberta e desmascarada, para Chandler, o império está em negação[4]. Está em negação não por pouco regular e intervir[5], mas sim, pelo fato do centro político decisor internacional mascarar tal intervenção com um tom não-político, terapêutico, administrativo/tecnicista e burocrático (2006). Tal ponto vai ao encontro da argumentação, por exemplo, de Bendaña, quando diz que mesmo tal processo sendo apresentado como uma solução técnica, possui pressupostos ideológicos profundos (2004: 6).

Difícil realizar uma análise tão precisa e acertada no tocante ao state-building quanto a apresentada por Chandler. Este, acertadamente, foca na construção teórica/linguística subliminar à dinâmica e verifica seus impactos no campo, ao invés de centrar-se na problematização dos instrumentos utilizados. Evidencia assim o alicerce desta violência que passa desapercebida aos olhos menos atentos. Assim, Chandler não somente abre caminho para uma maior desconstrução da dinâmica, mas também joga luz na forma de realizar tal empreitada. Na contemporaneidade, desmascarar violências é mais útil e urgente do que a busca por alternativas problem-solving. Dessa forma, a obra torna-se imprescindível.
Notas:
[1] Tradução livre do autor: No original: “[…] constructing or reconstructing institutions of governance capable of providing citizens with physical and economic security” (Chandler, 2006: 1).
[2] Ver (Cox, 1981: 128-130).
[3] Para crítica de Chandler, ver (2006: 6), para formulação teórica de Paris, ver (Paris, 2004: Capítulo 10).
[4] Tradução livre do autor para o original “empire in denial”.
[5] Para o autor existe inclusive mais regulação e controle ligados à ajuda, comércio e relações institucionais atualmente do que no passado.

Referências
Bendaña, Alejandro (2004) "From Peace-building to State-building: One Step Forward and Two Backwards", Presented at Nation-building, State-building and International Intervention: Between “Liberation” and Symptom Relief CERI - Paris 15th October 2004 (http://www.ceinicaragua.org.ni/documento/statebuildingpeace.pdf) [28th October 2008].
Bickerton, Christopher (2007) "State-Building: exporting State-Failure" in Bickerton, Cunliffe & Gourevitch (Ed.) Politics without Sovereignty: a critique of Contemporary International Relations. London: University College London Press, 93-111.
Chandler, David (2006) The Empire in Denial - The Politics of State-building. London: Pluto Press.
Cox, Robert (1981) "Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory" Millennium – Journal of International Studies. 10 126-155.
Fukuyama, Francis (2004) State-building: Governance and World Order in the Twenty-first Century. London: Profile Book.
Paris, Roland (2004) At war's end: building peace after civil conflict. Cambridge: Cambridge University Press.
Rotberg, Robert (2004) "The Failure and Collapse of Nation-States: Breakdown, Prevention and Repair" in Rotberg, Robert (Ed.) When States Fail: Causes and Consequences. Princeton: Princeton University Press, 1-50.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

E se Obama fosse africano? Por Mia Couto


Para quem não o conhece Mia Couto é um dos mais conhecidos autores Moçambicanos e talvéz um dos mais renomados autores de lingua portuguesa. É autor de inúmeras obras e reproduzimos aqui texto de sua autoria no tocante à eleição de Barack Obama nos EUA mas com um olhar na África.
Apreciem!!
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E se Obama fosse africano?
Por Mia Couto

Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.

Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.

Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.

Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: "E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.

E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?

1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.

2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.

3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.

4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).

5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas – tantas vezes no poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.

6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.

Inconclusivas conclusões

Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.

Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.

A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.

Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.

No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.

Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.