segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

State-building: Um Olhar Crítico


Abaixo, texto reprodução do texto publicado neste mês na Revista Autor.
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Ao se observar e analisar o cenário internacional, fica cada vez mais claro e patente o crescente aprofundamento do envolvimento da ONU relativamente à conflitualidade internacional ao longo do século XX e XXI[1]. O modelo de reconstrução pós-bélica e construção da paz (peacebuilding) onusiano é atualmente central, existindo inclusive um comum entendimento entre os diversos atores envolvidos em tal empreitada no tocante aos métodos, instrumentos empregados e no tipo de paz visualizada[2] (Richmond, 2004).

Esta resposta aos diferentes conflitos espalhados pelo globo nada mais é do que um mecanismo uniforme de resolução dos mesmos (Clapham, 1998), um instrumento único genericamente aplicado às diversas conflitualidades sendo inclusive apelidado por Ramsbotham de “procedimento operacional padrão” (2000: 170). Dentro desse modelo, o presente ensaio se concentrará na dimensão político-constitucional[3], o state-building, dada a sua centralidade em qualquer operação de paz das Nações Unidas (Brahimi, 2007), sendo estas, muitas vezes, medidas em termos de state-building (Manning, 2003). Trata-se o state-building de uma fase de construção de instituições políticas (Bickerton, 2007), da criação de instituições governamentais eficientes e legítimas (Paris e Sisk, 2007), para que estas sejam dotadas de instrumentos de governação capazes de prover segurança física e económica à população em questão (Chandler, 2006).

Neste ponto, é notória a centralidade e fundamentação do modelo em um tipo de governação, a democracia-liberal, lógica patente, por exemplo tanto na Agenda para a Paz, quanto no Relatório Brahimi (UN, 1992, 2000). Dessa forma, a paz faz-se intimamente ligada à institucionalização desse tipo de governação. Esta, altamente baseada em um entendimento liberal dos papéis das instituições (Richmond, 2004). Aqui é percebida não somente a forma de governação como alicerce da paz[4] e o estato-centrismo do modelo, mas principalmente, a transposição das lógicas estruturantes de um tipo específico de governação política/econômica do centro para a periferia do sistema internacional (Ibid 2004). É o que Paris, por exemplo, chama de a “mission civilizatrice moderna” (Paris, 2002: 638).

O olhar crítico e atento à dinâmica do state-building no cenário internacional percebe claramente a profunda violência na qual assenta-se tal modelo. Percebe nesta dinâmica uma (re)engenharia social baseada na transferência de valores e ideias de mundo ocidentais para locais em conflitos, uma “pacificação por meio da liberalização política e económica” (Paris, 1997: 56). Pacificação esta que ganha cada vez mais robustez com a força imensa adquirida pelo modelo no pós Guerra Fria, quando a tal receita democrática-liberal emerge como vitoriosa. Fato que permite assim a sua aplicação pelo mundo (Clapham, 1998).

Contudo, tal violência não é praticada de maneira aberta e exposta. Neste contexto, destaca-se a imensa despolitização desse processo. Apesar da profunda dimensão ideológica subliminar aos pressupostos do modelo, este é apresentado como uma resposta administrativa/burocrática (Bendaña, 2004), como se este pudesse passar, sem problemas, ao lado da sustentação popular (Chandler, 2005). Assim, um problema essencialmente político é transformado em um problema meramente técnico, sendo resolvido portanto por soluções técnicas (Bickerton, 2007).

Ao passar ao lado da esfera pública e sustentação popular, o statebuilding acaba criando instituições com fraca sustentação política e social (Bickerton, 2007), além de pouco (ou nada) legítimas. Desse modo, são criados “Estados fantasmas”, onde os mesmos existem no papel, em termos jurídicos, contudo não são entes políticos independentes, possuidores do auto-governo. Apesar de possuírem alguma governação e instituições, não vistos como incorporadores da vontade política de suas sociedades, tendo portanto a esfera política atrofiada Sendo estes, portanto, consequência direta da abordagem tecnicista, burocrática e administrativa do statebuilding (Chandler, 2006: 44-46). Ao criar Estados altamente dependentes do suporte externo para sobreviverem, o statebuilding passa a ser um processo de state failure (Bickerton, 2007: 100).

Esta dinâmica para ser justificada e legitimada aos olhos da comunidade internacional necessita do suporte, primariamente, de dois outros conceitos. O primeiro passa pela construção conceitual e atuando no âmbito justificativa da dinâmica e o segundo passa por uma desconstrução, ou adaptação, conceitual e atuando no tocante a legitimação da dinâmica. São eles os conceitos de Estados Falidos e soberania[5].

É cada vez mais evidente a narrativa de que Estados com fraca governação interna[6] são colocados como fonte de ameaças à segurança internacional[7], ao contrário do que ocorria no passado, quando as maiores turbulências à paz internacional eram esperadas de Estados fortes e agressivos (Bickerton, 2007). Nesse contexto, o statebuilding é visto como central no tocante à respostas à insegurança internacional (Chandler, 2006).

Para ter sentido e legitimidade, o statebuilding não pode ser reconhecido como uma intervenção externa direta e para tal um novo suporte teórico de soberania faz-se necessário. É Chandler, por exemplo, quem chama a atenção que o entendimento do state-building em termos altamente tecnicista e funcionalista passa por uma profunda problematização de perspectivas tradicionais de soberania. Esta passa então, a não mais ser entendida como auto-governo, mas sim, como uma mera capacidade (2006).

Dessa forma, ao ser (re)interpretada como capacidade, a soberania pode ser isolada das sociedades em questão e colocada nas mãos de entes externos (Bickerton, 2007). Nesse ponto, o olhar crítico observa a construção de formulações conceituais como “neo-trusteeship”, “pooled sovereignty”, ou “shared sovereignty” (Fearon e Laitin, 2004; Keohane, 2002; Krasner, 2004 apud Chandler, 2006: 40) que surgem como o alicerce e máscara teórica da intervenção externa. Com tal sustentação, o discurso mainstream do state-building não somente o retrata como legítimo, mas principalmente, como um mecanismo de fortalecimento dos Estados periféricos por parte do centro do sistema internacional. Algo que vem aumentar a capacidade e independência dos Estados periféricos (Chandler, 2006)

Apesar de óbvia para o olhar cuidadoso, toda essa intervenção e violência não são realizadas de forma desmascarada, para Chandler, o império está em negação[8]. Está em negação não por pouco regular e intervir[9], mas sim, pelo fato do centro político decisor internacional mascarar tal intervenção com um tom não-político, terapêutico, administrativo/tecnicista e burocrático (2006). Entretanto a observação crítica vem justamente desmascarar e dar visibilidade à violência que é o processo de state-building. Vem evidenciar que linguagens como “good governance”, “capacity-building”, “empowerment”, “ownership” na verdade simbolizam justamente a linguagem da política desse império em negação.

Nesse sentido, o olhar crítico acertadamente vem colocar à mostra tais mecanismos violentos de relacionamento entre o centro e a periferia. Tarefa esta da mais alta relevância. Difícil, portanto, não concordar com Foucault quando este diz que:
a real atividade política em uma sociedade como a nossa é criticar o funcionamento de instituições que aparentam ser ambos neutras e independentes; critica-las de tal maneira que a violência política a qual sempre foi exercida de maneira obscura por meio destas sejam desmascaradas, para que assim possam ser combatidas[10] (Foucault apud Rabinow, 1984: 6).

Assim, fica notório que a real mudança das políticas relativas à transformação dos conflitos e à construção de alicerces sólidos para a emergência de uma paz sustentável passa necessariamente por um olhar e pensamento críticos no tocante à reflexão dessas dinâmicas. Passa invariavelmente pela exibição das violências do pensamento ortodoxo e pelo (re)pensar o próprio pensar no tocante a transformação dos conflitos. Dessa forma, um refletir crítico relativamente ao state-building torna-se indispensável.




Referências
Bendaña, Alejandro (2004) "From Peace-building to State-building: One Step Forward and Two Backwards", Presented at Nation-building, State-building and International Intervention: Between “Liberation” and Symptom Relief CERI - Paris 15th October 2004 (http://www.ceinicaragua.org.ni/documento/statebuildingpeace.pdf) [28th October 2008].

Bickerton, Christopher (2007) "State-Building: exporting State-Failure" in Bickerton, Cunliffe & Gourevitch (Ed.) Politics without Sovereignty: a critique of Contemporary International Relations. London: University College London Press, 93-111.

Brahimi, Lakhadar (2007) "State Building is Crisis and Post-Conflict Countries", Presented at Global Forum on Reinventing Government, Building Trust in Government Viena - Austria (http://unpan1.un.org/intradoc/groups/public/documents/UN/UNPAN026305.pdf) [15th May 2008].

Chandler, David (2005) "Introduction: Peace without Politics?" International Peacekeeping. 12 (3), 307-321.

Chandler, David (2006) The Empire in Denial - The Politics of State-building. London: Pluto Press.

Clapham, Chistopher (1998) "Rwanda: The Perils of Peacemaking" Journal of Peace Research. 35 (2), 307-321.

David, Charles-Philippe (1999) "Does Peacebuilding Build Peace?: Liberal (Mis)steps in the Peace Process" Security Dialogue. 30 (1), 25-41.

Fukuyama, Francis (2004) State-building: Governance and World Order in the Twenty-first Century. London: Profile Book.

Jackson, Robert (1990) Quasi-States: Sovereignty, International Relations, and the Third World. Cambridge: Cambridge University Press.

Krasner, Stephen D.; Pascual, Carlos (2005) "Addressing State Failure" Foreign Affairs. 84 (4), 153-163.

Manning, Carrie (2003) "Local Level Challenges to post-Conflict Peacebuilding." International Peacekeeping. 10 (3), 25-43.

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Paris, Roland (1997) "Peacebuilding and the Limits of Liberal Internationalism" International Security. 22 (2), 54-89.

Paris, Roland (2002) "International Peacebuilding and the ‘Mission Civilisatrice’" Review of International Studies. 28 637-656.

Paris, Roland (2004) At war's end: building peace after civil conflict. Cambridge: Cambridge University Press.

Paris, Roland; Sisk, Timothy (2007) "Managing Contradictions: the Inherant Dilemmas of Postwar Statebuilding" (http://www.ipacademy.org/asset/file/211/iparpps.pdf), [16th May 2008].

Pureza, José Manuel et al. (2006) "Peacebuilding and Failed States: Some Thoeretical Notes" Oficina do CES nº 256. Julho 1-36.

Rabinow, Paul (Ed.) (1984) The Foucault Reader. London: Penguim Books.

Ramsbotham, Oliver (2000) "Reflections on UN post-settlement peacebuilding" International Peacekeeping. 7 (1), 169-189.

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UN (2000) "Report of the Panel on United Nations Peace Operations - A/55/305–S/2000/809" 21st August 2000, (http://secint24.un.org/documents/ga/docs/55/a55305.pdf), [13th December 2008].
Zartman, William (1995) "Introduction: Posing the Problem of State Collapse" in Zartman, William (Ed.) Collapsed States: The disintegration and the restoration of legitimate authority. London and Boulder: Lynne Rienner,
[1] Para uma visão do panorama das operações da ONU em suas gerações, ver por exemplo (Paris, 2004: Capítulo 1).
[2] Para uma visão mais profunda no tocante à ideia de paz subjacente ao modelo de peacebuilding da ONU ver por exemplo (Richmond, 2007).
[3] As outras dimensões são: económico-social; militar-securitária; psico-social (Ramsbotham, 2000: 182). Aqui é percebida a inclusão da dimensão psicológica, ponto não abordado, ou abordado tangencialmente em formulações teóricas anteriores, como por exemplo (David, 1999).
[4] Tradição com raízes por exemplo em Kant, quando este atribui como premissa primeira para a Paz Perpétua o republicanismo dos Estados.
[5] Dada a limitação de escopo e objetivo do ensaio, este não entrará em detalhe nas discussões de ambos os conceitos, para tal, ver notas seguintes.
[6] Para algumas formulações teóricas de Estados falhados, ver por exemplo (Jackson, 1990) e (Zartman, 1995). Para um olhar crítico ver (Pureza et al., 2006).
[7] Para enquadramento teórico do fraca governação como fonte de insegurança internacional ver, por exemplo (Fukuyama, 2004; Krasner e Pascual, 2005; Rotberg, 2004). Para respostas políticas ver, por exemplo (NSS, 2002: 1; UKSU, 2005: Sessões 1 e 2).
[8] Tradução livre do autor para o original “empire in denial”.
[9] Para o autor existe inclusive mais regulação e controle ligados à ajuda, comércio e relações institucionais atualmente do que no passado.
[10] Tradução livre do autor. No original: “the real political task in a society such as ours is to criticize the working of institutions which appear to be both neutral and independent; to criticize them in such a manner that the political violence which has always exercised itself obscurely though them will be unmasked, so that one can fight them” (Foucault apud Rabinow, 1984: 6).

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