quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O Império em Negação: As Políticas de Construção de Estados


É cada vez mais urgente um pensamento crítico referentemente às dinâmicas e políticas ocorridas no cenário internacional. Neste contexto, insere-se o olhar crítico e preciso de David Chandler no tocante ao state-building. Para Chandler, este trata-se da “construção ou reconstrução de instituições de governação capazes de prover os cidadãos com segurança física e económica”[1] (Chandler, 2006: 1) e é uma das questões políticas mais relevantes enfrentadas pela comunidade internacional atualmente. Questão presente, para o autor, não somente no pensamento pós-bélico, mas sim em qualquer relacionamento de Estados Ocidentais com não-Ocidentais. Dessa forma, desnudar a violência subliminar à esta prática é indispensável e aqui centra-se a presente obra.

A construção argumentativa da obra divide-se nomeadamente em três partes. A primeira delas foca nas dinâmicas de formulação de políticas Ocidentais. Aqui, além de mapeadas as diferenças e continuidades no tocante ao state-building em relação às políticas intervencionistas da década de 90, é analisada a problematização conceitual da soberania. Ainda nesta parte, outros dois pontos importantes são trabalhados: o privilégio da governação sobre o governo, no tocante às políticas de state-building; assim como a construção discursiva que separa o poder de sujeitos políticos, para que assim a negação do império ser sustentada.

Na segunda parte, à luz dessa dinâmica, é dada ênfase ao processo de alargamento da União Européia e a regulação externa na Bósnia. Este, para o autor, experimento chave, referente ao state-building internacional. Na terceira parte, Chandler observa mais atentamente o impacto das técnicas utilizadas dentro do state-building no campo. Analisa nomeadamente as práticas de anti-corrupção e aplicação da lei, e como estas enfraquecem o relacionamento entre as instituições estatais e suas sociedades. Posteriormente, segue o capítulo conclusivo de Chandler.

Nesse debate referentemente ao statebuilding é possível verificar claramente, diferentes vertentes teóricas. No campo mais ortodoxo nota-se, por exemplo Fukuyama vendo o state-building como dinâmica central no cenário internacional, dado que são os Estados fracos as fontes das diversas ameaças à segurança internacional (2004), ou então Rotberg, que vê no state-building um dos imperativos morais/estratégicos mais críticos de nosso tempo (2004). No plano crítico, aquele que enxerga nessa dinâmica uma forma de dominação/regulação, percebe-se duas vertentes. Chandler, parafraseando Cox[2], enxerga as críticas problem-solving, apolíticas e centradas na tecnicidade da questão, onde enquadra por exemplo a “institucionalização antes da liberalização” de Paris[3]. Na vertente mais crítica, é realizado um esforço para perceber porque o state-building tornou-se tão central na agenda Ocidental, além de enxergar os discursos envolvidos na aplicação desse dispositivo. Neste âmbito, enquadra-se a presente obra de Chandler assim como, por exemplo, o state-building exporting state-failure de Bickerton (2007).

Chandler expõe logo inicialmente como a idéia de fortalecimento da capacidade estatal é chave para o discurso das políticas de desenvolvimento. Mostra também, como o state-building é colocado no centro da narrativa de segurança internacional atual, que vê nos Estados com fraca governação interna, fontes de ameaça à segurança global. Ponto este, também ressaltado por Bickerton ao notar que o state-building passa a ser visto como necessário para manter a ordem internacional, pois ao contrario do que ocorria no passado, a construção narrativa da fonte de insegurança internacional passa não mais pelos Estados fortes e agressivos mas sim pelos fracos (2007: 94). Assim, o foco no fortalecimento da governação interna encaixa perfeitamente tanto com o discurso securitário quanto com o desenvolvimentista.

Para Chandler, essa lógica tecnicista e funcional no tocante à intervenção externa relativamente à capacitação estatal vem acompanhada de perto por uma problematização conceitual da soberania. Esta deixa de relacionar-se com o auto-governo e autonomia política para ser atenuada e até mesmo dividida em diferentes atributos. Dessa forma, formulações conceituais como “neo-trusteeship”, “pooled sovereignty”, ou “shared soverreignty” (Fearon e Laitin, 2004; Keohane, 2002; Krasner, 2004 apud Chandler, 2006: 40) surgem como sustentação teórica da intervenção externa. Assim, esta não somente é legitimada, mas principalmente é vista como positiva, como um fortalecimento dos Estados periféricos (Chandler, 2006).

Outro ponto ressaltado é a elevada despolitização do processo. Aqui, Chandler problematiza, por exemplo, como questões políticas passam ao lado da sustentação popular e da esfera pública e política. Problemas essencialmente sociais, económicos e políticos são abordados por soluções técnico-administrativas. Consequentemente, o state-building acaba criando instituições com pouca legitimidade/representatividade. Assim, o state-building produz “Estados Fantasmas”, que possuem tecnicamente alguma governação e instituições no papel, mas não são a incorporação da vontade política de sua sociedade e possuem, portanto, a esfera política atrofiada. Ideia esta, similar ao ponto de state-building como processo de state-failure colocado por Bickerton (2007).

Contudo, toda essa intervenção não é realizada de forma aberta e desmascarada, para Chandler, o império está em negação[4]. Está em negação não por pouco regular e intervir[5], mas sim, pelo fato do centro político decisor internacional mascarar tal intervenção com um tom não-político, terapêutico, administrativo/tecnicista e burocrático (2006). Tal ponto vai ao encontro da argumentação, por exemplo, de Bendaña, quando diz que mesmo tal processo sendo apresentado como uma solução técnica, possui pressupostos ideológicos profundos (2004: 6).

Difícil realizar uma análise tão precisa e acertada no tocante ao state-building quanto a apresentada por Chandler. Este, acertadamente, foca na construção teórica/linguística subliminar à dinâmica e verifica seus impactos no campo, ao invés de centrar-se na problematização dos instrumentos utilizados. Evidencia assim o alicerce desta violência que passa desapercebida aos olhos menos atentos. Assim, Chandler não somente abre caminho para uma maior desconstrução da dinâmica, mas também joga luz na forma de realizar tal empreitada. Na contemporaneidade, desmascarar violências é mais útil e urgente do que a busca por alternativas problem-solving. Dessa forma, a obra torna-se imprescindível.
Notas:
[1] Tradução livre do autor: No original: “[…] constructing or reconstructing institutions of governance capable of providing citizens with physical and economic security” (Chandler, 2006: 1).
[2] Ver (Cox, 1981: 128-130).
[3] Para crítica de Chandler, ver (2006: 6), para formulação teórica de Paris, ver (Paris, 2004: Capítulo 10).
[4] Tradução livre do autor para o original “empire in denial”.
[5] Para o autor existe inclusive mais regulação e controle ligados à ajuda, comércio e relações institucionais atualmente do que no passado.

Referências
Bendaña, Alejandro (2004) "From Peace-building to State-building: One Step Forward and Two Backwards", Presented at Nation-building, State-building and International Intervention: Between “Liberation” and Symptom Relief CERI - Paris 15th October 2004 (http://www.ceinicaragua.org.ni/documento/statebuildingpeace.pdf) [28th October 2008].
Bickerton, Christopher (2007) "State-Building: exporting State-Failure" in Bickerton, Cunliffe & Gourevitch (Ed.) Politics without Sovereignty: a critique of Contemporary International Relations. London: University College London Press, 93-111.
Chandler, David (2006) The Empire in Denial - The Politics of State-building. London: Pluto Press.
Cox, Robert (1981) "Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory" Millennium – Journal of International Studies. 10 126-155.
Fukuyama, Francis (2004) State-building: Governance and World Order in the Twenty-first Century. London: Profile Book.
Paris, Roland (2004) At war's end: building peace after civil conflict. Cambridge: Cambridge University Press.
Rotberg, Robert (2004) "The Failure and Collapse of Nation-States: Breakdown, Prevention and Repair" in Rotberg, Robert (Ed.) When States Fail: Causes and Consequences. Princeton: Princeton University Press, 1-50.

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