sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Ensaio Sobre a Cegueira


Estreia nos cinemas portugueses o filme Ensaio sobre a Cegueira de Fernando Meireles. O diretor de “Cidade de Deus” e “Jardineiro Fiel” baseado na obra do Nobel português José Saramago realiza um excelente filme.

Uma cidade é assolada por uma epidemia repentina e inexplicável. Uma pessoa no meio do trânsito alega ter ficado cega de uma hora para outra. Ao consultar médico e especialistas, vê que não existe nada fisicamente errado com seus olhos e volta para casa. No dia seguinte, mais e mais pessoas começam a ter a cegueira e de uma maneira inexplicável todos vão ficando cegos.

Para evitar mais contágio da misteriosa epidemia, o governo coloca os infectados em quarentena em um hospital velho e abandonado. Estes, são monitorados por guardas fortemente armados que os impedem de saírem do hospital. Logo, este está lotado e o sentido de sobrevivência vem à tona e o grupo entra em colapso. Primeiramente é feita uma divisão entre diferentes divisórias de camas, onde rapidamente percebe-se o tomar de lideranças, de que forma estas são respeitadas e criação de processos decisórios dentro dos diferentes grupos.

Em um ambiente assim, obviamente a briga pela comida será feroz e que controla esta controla todo o hospital. Rapidamente percebe-se a diferença de necessidades e de violências sofridas por homens e mulheres. Uma dessas, misteriosamente, não está cega e fingiu-se assim para ficar ao lado do marido, o médico. Ao ser a única que vê, a mulher do médico, possui papel central no grupo.

É um filme particularmente interessante para quem possui alguma sensibilidade para as Relações Internacionais, resolução de conflitos e questões de género. É um filme onde pode-se perceber claramente pontos como a “governamentabilidade/bio-política” de Foucault, ou o escalar e (d)escalar de um conflito, resolução pacífica (ou não) destes, assim como as diferenças vividas por homens e mulheres.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O Império em Negação: As Políticas de Construção de Estados


É cada vez mais urgente um pensamento crítico referentemente às dinâmicas e políticas ocorridas no cenário internacional. Neste contexto, insere-se o olhar crítico e preciso de David Chandler no tocante ao state-building. Para Chandler, este trata-se da “construção ou reconstrução de instituições de governação capazes de prover os cidadãos com segurança física e económica”[1] (Chandler, 2006: 1) e é uma das questões políticas mais relevantes enfrentadas pela comunidade internacional atualmente. Questão presente, para o autor, não somente no pensamento pós-bélico, mas sim em qualquer relacionamento de Estados Ocidentais com não-Ocidentais. Dessa forma, desnudar a violência subliminar à esta prática é indispensável e aqui centra-se a presente obra.

A construção argumentativa da obra divide-se nomeadamente em três partes. A primeira delas foca nas dinâmicas de formulação de políticas Ocidentais. Aqui, além de mapeadas as diferenças e continuidades no tocante ao state-building em relação às políticas intervencionistas da década de 90, é analisada a problematização conceitual da soberania. Ainda nesta parte, outros dois pontos importantes são trabalhados: o privilégio da governação sobre o governo, no tocante às políticas de state-building; assim como a construção discursiva que separa o poder de sujeitos políticos, para que assim a negação do império ser sustentada.

Na segunda parte, à luz dessa dinâmica, é dada ênfase ao processo de alargamento da União Européia e a regulação externa na Bósnia. Este, para o autor, experimento chave, referente ao state-building internacional. Na terceira parte, Chandler observa mais atentamente o impacto das técnicas utilizadas dentro do state-building no campo. Analisa nomeadamente as práticas de anti-corrupção e aplicação da lei, e como estas enfraquecem o relacionamento entre as instituições estatais e suas sociedades. Posteriormente, segue o capítulo conclusivo de Chandler.

Nesse debate referentemente ao statebuilding é possível verificar claramente, diferentes vertentes teóricas. No campo mais ortodoxo nota-se, por exemplo Fukuyama vendo o state-building como dinâmica central no cenário internacional, dado que são os Estados fracos as fontes das diversas ameaças à segurança internacional (2004), ou então Rotberg, que vê no state-building um dos imperativos morais/estratégicos mais críticos de nosso tempo (2004). No plano crítico, aquele que enxerga nessa dinâmica uma forma de dominação/regulação, percebe-se duas vertentes. Chandler, parafraseando Cox[2], enxerga as críticas problem-solving, apolíticas e centradas na tecnicidade da questão, onde enquadra por exemplo a “institucionalização antes da liberalização” de Paris[3]. Na vertente mais crítica, é realizado um esforço para perceber porque o state-building tornou-se tão central na agenda Ocidental, além de enxergar os discursos envolvidos na aplicação desse dispositivo. Neste âmbito, enquadra-se a presente obra de Chandler assim como, por exemplo, o state-building exporting state-failure de Bickerton (2007).

Chandler expõe logo inicialmente como a idéia de fortalecimento da capacidade estatal é chave para o discurso das políticas de desenvolvimento. Mostra também, como o state-building é colocado no centro da narrativa de segurança internacional atual, que vê nos Estados com fraca governação interna, fontes de ameaça à segurança global. Ponto este, também ressaltado por Bickerton ao notar que o state-building passa a ser visto como necessário para manter a ordem internacional, pois ao contrario do que ocorria no passado, a construção narrativa da fonte de insegurança internacional passa não mais pelos Estados fortes e agressivos mas sim pelos fracos (2007: 94). Assim, o foco no fortalecimento da governação interna encaixa perfeitamente tanto com o discurso securitário quanto com o desenvolvimentista.

Para Chandler, essa lógica tecnicista e funcional no tocante à intervenção externa relativamente à capacitação estatal vem acompanhada de perto por uma problematização conceitual da soberania. Esta deixa de relacionar-se com o auto-governo e autonomia política para ser atenuada e até mesmo dividida em diferentes atributos. Dessa forma, formulações conceituais como “neo-trusteeship”, “pooled sovereignty”, ou “shared soverreignty” (Fearon e Laitin, 2004; Keohane, 2002; Krasner, 2004 apud Chandler, 2006: 40) surgem como sustentação teórica da intervenção externa. Assim, esta não somente é legitimada, mas principalmente é vista como positiva, como um fortalecimento dos Estados periféricos (Chandler, 2006).

Outro ponto ressaltado é a elevada despolitização do processo. Aqui, Chandler problematiza, por exemplo, como questões políticas passam ao lado da sustentação popular e da esfera pública e política. Problemas essencialmente sociais, económicos e políticos são abordados por soluções técnico-administrativas. Consequentemente, o state-building acaba criando instituições com pouca legitimidade/representatividade. Assim, o state-building produz “Estados Fantasmas”, que possuem tecnicamente alguma governação e instituições no papel, mas não são a incorporação da vontade política de sua sociedade e possuem, portanto, a esfera política atrofiada. Ideia esta, similar ao ponto de state-building como processo de state-failure colocado por Bickerton (2007).

Contudo, toda essa intervenção não é realizada de forma aberta e desmascarada, para Chandler, o império está em negação[4]. Está em negação não por pouco regular e intervir[5], mas sim, pelo fato do centro político decisor internacional mascarar tal intervenção com um tom não-político, terapêutico, administrativo/tecnicista e burocrático (2006). Tal ponto vai ao encontro da argumentação, por exemplo, de Bendaña, quando diz que mesmo tal processo sendo apresentado como uma solução técnica, possui pressupostos ideológicos profundos (2004: 6).

Difícil realizar uma análise tão precisa e acertada no tocante ao state-building quanto a apresentada por Chandler. Este, acertadamente, foca na construção teórica/linguística subliminar à dinâmica e verifica seus impactos no campo, ao invés de centrar-se na problematização dos instrumentos utilizados. Evidencia assim o alicerce desta violência que passa desapercebida aos olhos menos atentos. Assim, Chandler não somente abre caminho para uma maior desconstrução da dinâmica, mas também joga luz na forma de realizar tal empreitada. Na contemporaneidade, desmascarar violências é mais útil e urgente do que a busca por alternativas problem-solving. Dessa forma, a obra torna-se imprescindível.
Notas:
[1] Tradução livre do autor: No original: “[…] constructing or reconstructing institutions of governance capable of providing citizens with physical and economic security” (Chandler, 2006: 1).
[2] Ver (Cox, 1981: 128-130).
[3] Para crítica de Chandler, ver (2006: 6), para formulação teórica de Paris, ver (Paris, 2004: Capítulo 10).
[4] Tradução livre do autor para o original “empire in denial”.
[5] Para o autor existe inclusive mais regulação e controle ligados à ajuda, comércio e relações institucionais atualmente do que no passado.

Referências
Bendaña, Alejandro (2004) "From Peace-building to State-building: One Step Forward and Two Backwards", Presented at Nation-building, State-building and International Intervention: Between “Liberation” and Symptom Relief CERI - Paris 15th October 2004 (http://www.ceinicaragua.org.ni/documento/statebuildingpeace.pdf) [28th October 2008].
Bickerton, Christopher (2007) "State-Building: exporting State-Failure" in Bickerton, Cunliffe & Gourevitch (Ed.) Politics without Sovereignty: a critique of Contemporary International Relations. London: University College London Press, 93-111.
Chandler, David (2006) The Empire in Denial - The Politics of State-building. London: Pluto Press.
Cox, Robert (1981) "Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory" Millennium – Journal of International Studies. 10 126-155.
Fukuyama, Francis (2004) State-building: Governance and World Order in the Twenty-first Century. London: Profile Book.
Paris, Roland (2004) At war's end: building peace after civil conflict. Cambridge: Cambridge University Press.
Rotberg, Robert (2004) "The Failure and Collapse of Nation-States: Breakdown, Prevention and Repair" in Rotberg, Robert (Ed.) When States Fail: Causes and Consequences. Princeton: Princeton University Press, 1-50.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

E se Obama fosse africano? Por Mia Couto


Para quem não o conhece Mia Couto é um dos mais conhecidos autores Moçambicanos e talvéz um dos mais renomados autores de lingua portuguesa. É autor de inúmeras obras e reproduzimos aqui texto de sua autoria no tocante à eleição de Barack Obama nos EUA mas com um olhar na África.
Apreciem!!
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E se Obama fosse africano?
Por Mia Couto

Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.

Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.

Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.

Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: "E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.

E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?

1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.

2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.

3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.

4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).

5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas – tantas vezes no poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.

6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.

Inconclusivas conclusões

Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.

Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.

A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.

Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.

No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.

Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

A condicionalidade não é um instrumento essencial para garantir o sucesso das políticas de apoio ao desenvolvimento.






Como todo bom Botequim, todos têm voz na conversa. Abaixo post enviado por Moara Crivelente.


Moara Crivelente é estudante do curso de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra.


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A política de condicionalidades para o apoio ao desenvolvimento, na maior parte dos países em que foi aplicada, vem comprovando a sua eficácia relativa ou, pior, a geral ausência de bons resultados tanto no sentido do desenvolvimento real e quanto apenas do crescimento econômico, o que parece ser o foco principal e muitas vezes o fim das políticas de ajuda externa neste âmbito.



A Primeira Geração de condicionalidades baseia-se apenas em pressupostos liberais de abertura de mercado, liberalização do comércio, retirada do Estado das ações econômicas, altas taxas de juros, dívidas infindáveis, privatizações em massa, menores gastos públicos, etc. A principal expressão disso era a política do Banco Mundial, na década de 1980, de colocar como condição aos seus prestamos ajustes setoriais e mesmo estruturais, sendo grande parte dos fundos emprestados direcionados a este fim.



Já na Segunda Geração de condicionalidades, com uma revisão de consciência acerca dos Direitos Humanos, democracia ou mesmo corrupção, decorrem-se interferências em assuntos políticos, estabelecendo-se um modelo de “boa governação”, que promoveria a democracia sobretudo para menor atuação do Estado em assuntos econômicos, e reveria em certa medida a posição sobre as políticas sociais. Mantém-se, todavia, do paradigma neoliberal em que se baseia o sistema econômico dos principais Estados doadores.



Segundo o Relatório sobre a Pobreza da OXFAM (1995), o modelo liberal continua em vigor, já que os doadores usariam os Programas de Ajustamento Estrutural para “obrigar governos a imporem taxas a serviços básicos como a educação primária, o acesso à saúde, a desvalorizarem a moeda nacional, a estabelecerem taxas de juros ditadas pelo FMI, a realizarem privatizações e liberalização dos mercados…” (tradução da autora). Isto tudo mesmo com a crescente constatação do erro na visão do Sul como uma entidade uniforme.



O incumprimento das condicionalidades impostas pelos doadores têm várias exemplificações, entre elas o caso de países como Zimbábue que, mesmo com constantes violações de Direitos Humanos, negação do direito ao desenvolvimento, direitos políticos, etc, continua recebendo apoio financeiro direto através do governo. Nem mesmo soluções como as smart sanctions – que afetam diretamente os responsáveis por essas violações e não a população de forma geral – foram ainda implementadas.



As sanções gerais poriam em causa a continuidade da entrada de fundos que garantiriam o pagamento da dívida e a manutenção das trocas comerciais com vantagens, colocando em risco a relação alcançada entre doadores e recipientes tanto em termos políticos como econômicos.

Por outro lado, a grande maioria dos países Africanos e alguns da América Latina, além de afundados em dívidas externas, seguem com baixo Índice de Desenvolvimento Humano e alto Índice de Pobreza Humana, mesmo depois de décadas seguingo planos estrangeiros de apoio ao desenvolvimento. Exemplos disso podem ser observados em dados do próprio Banco Mundial, que demonstra o declínio sofrido por países da América Latina e África que cumpriram as condições que lhes foram colocadas (2005).



Segundo mesmos dados do Banco Mundial, entre 1990 e 1993, mais de 13.4 biliões de dólares foram transferidos de África para seus credores, quatro vezes mais do que o gasto em saúde e educação juntas. E ainda assim, o pagamento da dívida não estaria seguindo as metas estabelecidas.

Para exemplificação, além de tudo, da manutenção dos modelos de condicionalidade, dois dos focos dados no “Guia de implementação da Boa Governação” do Governo Australiano (2000) referente à economia são a dinamização do setor privado, a economia aberta baseada no mercado e a implementação de normas sociais que respeitem o direito de propriedade para o funcionamento dos mercados. Ainda, a Agenda de Doha para o Desenvolvimento (Julho/2008) apresenta princípios como “apoio para o comércio”, ainda baseada na abertura do comércio, redução do nível máximo de proteção e redução do apoio doméstico à agricultura. Além disso, os credores estão envolvidos de forma demasiadamente intrusiva nesses países em nome da “eficiência da ajuda”.



Ravi Kanbur (2000) cita análises que concluem não haver ligação entre a entrada de apoio financeiro e o crescimento de indicadores de desenvolvimento per capita. As premissas são as relações entre apoio financeiro, crescimento e “um bom quadro de políticas macroeconómicas”. Segundo Bunside, citado por Kanbur, a conclusão está nessas relações, já que o apoio financeiro não iria para países com o requerido “bom quadro de políticas”, e no fato de que este apoio financeiro tampouco induz a esses quadros.

Através dessas análises evidencia-se o fato de que os condicionalismos hoje seguem os mesmos padrões liberais já criticados. A “Segunda Geração” de condições compõe-se apenas distrações às críticas contra o enfoque excessivo, sem bases e comprovadamente ineficaz no crescimento econômico para direcionamento geral ao desenvolvimento, cuja esfera de justiça social fica declaradamente para “longo-termo”.



Ao invés de abranger-se os condicionalismos, o que deveria ser aperfeiçoado é o estímulo à justiça no que se trata de crimes como a violação dos direitos humanos – não esquecendo, é claro, direitos económicos, sociais e culturais e o direito ao desenvolvimento – através de mecanismos regionais já existentes, como no caso da Comissão Africana para os Direitos Humanos, a OEA, ou, no caso da Ásia, que ainda não possui um mecanismo regional para o assunto, através do próprio Conselho para os Direitos Humanos das Nações Unidas, cessando as intervenções externas bilaterais, em sua maioria inquisitórias.



O desenvolvimento interno de políticas públicas mais eficazes deveria ser substituído pelas imposições externas vigentes de reformas e aberturas económicas maioritariamente insustentáveis. Novas formas de cooperação devem ser desenvolvidas de forma mais abrangente, horizontal e prática, reconhecendo-se a responsabilidade de toda a comunidade internacional por extremos de subdesenvolvimento presentes em diferentes cenários, tanto de “Sul” quanto de “Norte”.


Fontes:

Commonwealth of Australia – Good Governance Guiding Principles for Implementation. Canberra: Australian Agency for International Development, 2000. ISBN 0 642 44945 7

Gillespine, Alexander – The illusion of progress: unsustainable development in international law and policy. London: Earthscan Publications, 2001. ISBN 1 85383 757 1

Kanbur, Ravi – “Aid, Conditionality and Debt in Africa” in Finn Tarp (ed) Foreign Aid and Development: Lessons Learnt and Directions for the Future. London: Routledge, 2000.

Stokke, Olav – Aid and Political Conditionality. London: Frank Cass, 1995. (pp.1-87)

The Doha Development Agenda (2008). Disponível em http://www.worldbank.org/ , consultada em 25 de Outubro de 2008.

World Bank Institute (2008) – Governance Matters: Worldwide Governance Indicators 1996-2007.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

“Change Has Come To America”


Após 21 meses, muitos debates, muita propaganda, muito dinheiro gasto, muito escrutínio por parte da mídia e muita atenção internacional, a esperança da mudança vence o medo da mesmice. Barack Hussein Obama II é eleito o 44º presidente dos Estados Unidos.

Obama quebra alguns paradigmas fundamentais da política norte-americana e do fazer política nos Estados Unidos. Primeiramente não aceita fundos privados para levar adiante sua campanha. Rejeita assim, o dinheiro das taxas dos contribuintes e baseia as finanças da sua campanha em pequenas doações, de cinco, dez, vinte dólares. Mudança essa que segundo especialistas é uma mudança que vem para ficar na política americana.

Outro alicerce da campanha é a mobilização de pessoas que votam pela primeira vez e principalmente uma enorme mobilização de jovens que querem ter suas vozes ouvidas e especialmente seus votos contados. Uma campanha muito bem articulada e mobilizada de forma diferente, utilizando a tecnologia a seu favor, nomeadamente a Internet e SMS.

O Partido Democrata ainda quebra outro paradigma da política norte-americana, a inserção feminina durante a corrida não somente como figuração mas com reais chances de ganhar a nominação partidária. Hilary Cllinton ao competir de igual para igual pela nomeação democrata quebra um muro no tocante a inserção das mulheres não somente na dimensão política, mas na esfera pública como um todo.

Contudo a eleição de Obama é acima de tudo uma vitória de um movimento que começa muito antes com a abolição da escravatura e posteriormente com a luta por direitos civis. Barack Obama é o primeiro negro eleito presidente dos Estados Unidos. Isso por si só, já é algo extraordinário em qualquer canto do país com uma história escravocrata, mas é especialmente invulgar nos Estados Unidos onde a questão racial é especialmente uma questão explosiva. Espera-se que não mais!

Barack Obama percebe o momento turbulento que a sociedade americana enfrenta, o tempo crítico que vivemos como sociedade internacional e principalmente a situação em xeque em que se encontra a liderança norte-americana no cenário internacional e desde o início baseia sua campanha em “Change” e “Yes we can”. Em seu discurso como vencedor, Obama percebe a dura realidade que enfrentará no dia 20 de Janeiro de 2009, quando tomará posse.

Obama percebe que um país lutando duas guerras e em profunda crise financeira, vive em um mundo em perigo onde os desafios devem ser enfrentados em conjunto e tem muitas alianças a reparar e principalmente a recuperar. Ainda em seu discurso, Obama insinua que sua política externa será baseada no “soft power” quando diz que “o farol americano ainda está acesso […] a força americana vem não da força das armas, não da riqueza das finanças, mas do poder de seus ideiais”.

Barack Obama entra na sala oval com elevado suporte tanto no Senado quanto no Congresso. O partido Democrata ganha 5 cadeiras no Senado tendo a maioria de 56 posições. No Congresso a vitória foi maior, ganhou 18 cadeiras e aumentando sua posição para 252 lugares. Contudo Obama pretende unir os dois partidos em agendas comuns ao invés de usar a sua maioria nas duas casas para implementar sua agenda.







As eleições norte-americanas mexeram com todos, americanos e não americanos. Todos estavam atentos no que ocorria nos Estados Unidos. Mais do que nunca, os Estados Unidos precisam de um presidente unificador e não polarizador, algo que W. Bush falhou terrivelmente. É tempo de mudança nos Estados Unidos e de esperança de mudança no mundo.

Obama possui agora uma pequena janela de oportunidade. Recebe um mundo ao seu lado, ansioso por uma liderança positiva em busca de uma maior justiça social no globo. Exatamente o mesmo sentimento internacional que W. Bush teve logo após o atentado de 11/9 e a queda das torres do WTC e atentado no Pentágono. Resta saber se Obama diferentemente de W. Bush, usará essa boa vontade global para com os norte-americanos e construirá alianças internacionais para que possamos chegar à uma maior justiça social internacional. Fica a esperança do nosso Botequim, “Yes we can!”.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Cobertura das Eleições: Ohio, Pensilvânia e Illinois

Até o momento as projecções da emissora CNN apresentam uma grande vantagem ao candidato democrata Barack Obama no tocante aos votos eleitorais (para compreender melhor as eleições dos EUA, clique aqui). Os estados da Pensilvânia e Illinois apresentam uma vantagem de 31% e 9%, respectivamente, para o democrata. Entretanto, a maior conquista de Obama se encontra em Ohio, estado que tradicionalmente é republicano e, que segundo as projecções da CNN, apresenta uma vantagem de 12% para os democratas.



O resultado geral estimado até o momento pode ser visto nos gráficos abaixo, Obama com 194 dos votos eleitorais (lembrando que é preciso ter 270 votos eleitorais para ser presidente) contra 69 dos votos eleitorais para o candidato McCain.


Confira novas informações no botequim...

Na reta final... McCain ou Hussein?


Fonte: The New York Times



Há menos de doze horas para o resultado das eleições presidenciais norte-americana, o botequim traz uma excelente síntese da corrida a Casa Branca realizada pelo jornal New York Times (Clique AQUI para ver o vídeo). Deste a acirrada luta entre Hillary e Obama dentro do partido democrata, passando pela inclusão das personagens Sarah Palin e Joe Biden, e finalmente entre as trocas de acusações entre McCain e Obama nas mais diversas áreas (Joe, o canalizador; socialista; terrorista; entre outros). Tudo isso fez parte de uma das mais disputadas corridas à presidência da república dos Estados Unidos.

Para compreenderem melhor as dinâmicas das eleições e suas principais caracteristicas, CLIQUE AQUI para visualizar o vídeo interativo sobre o tema.


Apreciem sem moderação…



O botequim estará atento aos próximos acontecimentos das eleições… confiram!!!

sábado, 1 de novembro de 2008

A segurança internacional e a necessidade de se enxergar além do Estado


Reproduzimos aqui, artigo publicado por Ramon Blanco na Revista Autor.
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Os estudos de segurança sempre tiveram papel protagonista nas preocupações da disciplina de Relações Internacionais desde a sua criação. Sob uma perspectiva clássica, o Estado é o ente de referência do estudo e, portanto, o sujeito a quem deve-se proteger, sendo a segurança constituinte do mesmo, uma vez que o Estado moderno Vestifaliano/Weberiano é criado justamente em resposta à insegurança interna e externa.

O período da Guerra-Fria é marcado por uma agenda internacional sufocada e limitada pela lógica bipolar e o conceito de segurança não foge a isso, sendo este dominado pelo conflito armado direto entre Estados. Contudo, o fim da Guerra-Fria marca não somente a possibilidade da emergência de outros assuntos e temáticas na agenda internacional, mas também o surgimento de novas definições e objetos de segurança para além do Estado. Não se trata de dizer que o Estado perde importância para a segurança internacional, de forma alguma, mas sim em olhar para o interior do mesmo e perceber que um Estado seguro não necessariamente significa a segurança de sua população.

É neste contexto que surge o conceito de segurança humana, onde os objetos de referência são as pessoas e as ameaças diversas e muitas vezes difusas. Diante de tal panorama, o presente artigo vem chamar a atenção para uma crise que vem colocando sérios riscos à segurança internacional, o aumento no preço dos alimentos ocorrido no último ano, principalmente nos últimos meses e em alguns casos, tal aumento é ocorrido exponencialmente em questão de semanas. Crise essa que afeta mais pessoas que a tão falada crise imobiliária, e talvez podendo ter impacto ainda mais devastador que a crise financeira, uma vez que coloca em grave risco a imensa maioria populacional do planeta.

O preço de alimentos como por exemplo o arroz, o milho e outros grãos básicos, aumentou de forma significativa, chegando a dobrar ou mesmo triplicar. Tal cenário impacta diretamente os mais pobres, uma vez que estes têm nos alimentos uma grande parcela de seus gastos, podendo inclusive em alguns casos, representar até metade do gasto familiar.

A razão para tal aumento assenta-se principalmente em quatro dimensões: a mudança na dieta de uma grande população dos países emergentes; o aquecimento global; o aumento do preço do petróleo; e o grande aumento da utilização dos biocombustíveis. Aumento que para alguns não representa uma tendência de curto-prazo, mas sim uma mudança estrutural, sem retorno a patamares anteriores.

Os efeitos de tal acontecimento já vêm sendo percebidos em turbulências sociais em países africanos como Niger, Senegal, Camarões e Burkina Faso e preocupa ministros e diplomatas africanos, dado o grande potencial contagiante que tais eventos possa vir a ter em outros países. São evidenciados episódios violentos também no Egito, Costa do Marfim, Bangladesh, Filipinas e Haiti, neste levando inclusive à queda do Primeiro-Ministro. É preciso ter em mente que as turbulências sociais têm um grande efeito propagador e é isso que coloca em risco não somente as pessoas diretamente afetadas, mas também tem o potencial de afetar regiões inteiras e por conseguinte a segurança do sistema internacional como um todo.

Este retrato coloca os mais pobres, a imensa maioria da população mundial, expostos não só à uma violência direta, possivelmente derivada de uma escassez de recursos, mas principalmente à uma violência estrutural, esta muito mais profunda e difícil de ser superada. Tal situação é agravada ainda mais se pensarmos que tal aumento nos preços traz consigo uma lógica perversa, pois atinge também um grande instrumento de ajuda humanitária, o World Food Program da ONU, pois o impõe pesados custos operacionais, podendo assim afetar muito negativamente a sua atuação.

Diante deste panorama percebe-se que é preciso ter em mente a existência de outros atores, além dos Estados, que necessitam ser objetos de segurança e que existem outras ameaças, além dos conflitos armados clássicos, que causam insegurança, para que desta forma possam ser criadas medida e instrumentos eficazes para a superação da mesma. Dito isso, é necessário concordar com o representante do Qatar que na primeira reunião Conselho de Segurança de 2007, onde a pauta era justamente as ameaças para a paz e segurança mundiais, quando diz que:
“O conceito de segurança evoluiu ao longo do tempo e tornou-se mais completo e amplo para incluir questões como a segurança coletiva e outras que não eram evidenciadas com os conceitos estabelecidos pertencentes ao conflito armado. As guerras não são mais as únicas coisas que ameaçam a segurança das pessoas” (UN, 2007:4).
A frase é bastante precisa e pertinente não somente ao mencionar o alargamento das ameaças, mas principalmente, ao colocar a referência no sujeito que deve ser alvo de segurança no plano internacional, as pessoas.