quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

O Conceito de hegemonia em Gramsci

Perante a complexidade do mundo actual, uma visão menos estato-cêntrica das relações internacionais se tornou fundamental para a compreensão dos actuais fenómenos tanto nacionais quanto internacionais. É neste sentido que o conceito de hegemonia em Gramsci se enquadra na actualidade. Sem dúvida que António Gramsci foi um dos filósofos que mais contribuiu para a moderna concepção de hegemonia enquanto parte fundamental das ciências sociais. Neste livro, o sociólogo Luciano Gruppi atenta trazer, e até contribuir, para que a noção de hegemonia seja trazida para o centro das discussões tanto para a organização social nacional, quanto internacional.

Devido as restrições espaciais, juntamente com a complexidade do tema apresentado pelo autor, adoptaremos a seguinte estratégia: num primeiro momento, expor os principais conceitos formadores do conceito de hegemonia em Gramsci;[1] e, em segundo lugar, analisar o impacto empírico deste conceito nos estudos das relações internacionais.

O conceito de hegemonia[2], segundo Gramsci, é complexo, onde sua acepção se baseia nos trabalhos de Marx (essencialmente na relação de dependência entre super-estrutura e estrutura) e, mais precisamente, na actuação de Lênin (no que diz respeito a compreensão deste estadista da luta cultural e politica enquanto factores fundamentais para a manutenção de um determinado grupo no poder – em suma, contra o determinismo económico). Deste modo, Gramsci começa por afirmar que “tudo é política, inclusive a filosofia ou as filosofias; e a única filosofia é a história em ato, ou seja, a própria vida”[3] (p. 1), permitindo-o assim aproximar a teoria com a prática política. E o elo entre política e prática, segundo Gramsci, é justamente o partido político (entendido aqui enquanto formador de consenso).

Esta particular noção e importância atribuída à história – derivada de Georges Sorel – (Cox, 1983), Gramsci concebe a noção de que a interactividade entre a estrutura (económica) e a super-estrutura (política e social) evita o reducionismo económico[4], formando assim o que chama de blocco storico. Para o filosofo, tal conceito tem uma vertente revolucionária (semelhante a revolução encontrada em sua época – e.g., a revolução bolchevique), onde a transformação (trasformismo) desta estrutura formada pelas esferas políticas, sociais e económica somente poderia ser substituída por uma outra capaz de igual ou superior características. Deste modo, não é possível existir um bloco histórico sem a existência de uma classe dominante. Por conseguinte, antes de seguirmos para os mecanismos de manutenção das classes hegemónicas, é fundamental compreender que a noção de poder em Gramsci se divide em “dominação” e “liderança moral e intelectual” (Arrighi, 1993), que remonta a figura mitológica apresentada por Maquiavel do centauro, onde a pratica política se resume a interacção entre coesão e consenso.

No entanto, para que essa classe dominante se mantenha no poder (para além de já “dever” exercer liderança) é necessário que disponha de alguns mecanismos de formação de consenso. Estes princípios estão descritos em sua principal obra Cadernos do Cárcere (Prison Notebooks), que foram feitos aquando sua detenção entre 1929 e 1935. Conforme Gruppi aponta, há vários filões que abrangem tal vasta obra, a relação entre cultura e povo, formação do estado italiano, a história dos intelectuais e sua relação com as massas. Entretanto há uma constante nos trabalhos de Gramsci, toda sua análise parte da compreensão ou derivam da questão de hegemonia (p. 65). A construção da formação intelectual faz parte da essência do conceito hegemonia em Gramsci, assim sendo as classes subalternas tem uma concepção do mundo que é directamente elaborada pelas classes dominantes. Assim sendo, os canais (segundo Gramsci) pelos quais as classes dominantes constroem seu sua influência ideal (ou seja, sua capacidade de difundir seus valores ideais) passam pelo controle da escola, da religião, do serviço militar, dos jornais (imprensa) locais, regionais e nacionais, por manifestações culturais, folclore, etc. Um outro ponto apresentado por Gruppi passa pela compreensão da relação entre de Marx, Maquiavel e Gramsci. Para Gramsci, “a hegemonia não é apenas política, mas é também um fato cultural, moral de concepção do mundo” (p. 73), passando necessariamente por uma reforma intelectual e moral (p. 72). Conforme supra mencionado, o mediador entre política e prática é justamente o conceito de partido político (revolucionário). Este é um factor fundamental para Gramsci, pois para este autor, o partido é o “príncipe moderno”, enquanto elemento unificador, moral e culturalmente. A grande crítica de Gramsci a Marx está fundamentalmente naquilo que Gramsci chama de materialismo vulgar, visão que combate veementemente as deformações do marxismo, entendido como materialismo mecânico. Entretanto não se deve entender que a visão grasmsciana se afasta do marxismo por completo, e nesta obra Gruppi consegue evitar tal percepção errónea. A descrição acima se resume a apresentar os principais elementos do complexo conceito de hegemonia em Gramsci, é crucial entendê-los sob a óptica de formação de classes sociais, inerentes de cada sociedade. A transposição para o internacional deve necessariamente incorporar tais princípios sob um conceito mais abrangente (ou alargado) de Estado.

Ao contrario da visão realista (a view from the top) da política internacional ou seja, onde os Estados têm prevalência nos assuntos internacionais, uma visão gramsciana das relações internacionais integra como parte fundamental do seu discurso as questões de estruturação/organização social (doméstica), essencialmente como difusões de valores ideais e culturais. Uma visão ou entendimento do mundo que tenha como principal escopo analisar as relações internacionais de baixo para cima (bottom-up ou a view from below) deve certamente ter em conta as relações sociais de poder, sua formação e seus instrumentos de manutenção de poder. O legado de Gramsci, concentrado e bem articulado nesta obra, ainda gera efeitos nos actuais pensadores sobre reestruturação e governação global, ordem(ns) mundial(is), tais como Robert Cox, Stephen Gill, Giovanni Arrighi, Robert Bocock, Jonathan Joseph, etc.

Notas

[1] Evidentemente que os conceitos aqui apresentados serão expostos em sua forma mais sumária. Tendo em mente que estes facilmente seriam tópicos de teses, livros, ou capítulos.
[2] O conceito de hegemonia é derivado do grego eghestai (ou hégemonía), que se traduz por “ser líder”, “ser guia”; “acção de guiar” (Houaiss 2001).
[3] Grifo do autor.
[4] É justamente a partir desta dialéctica entre o reducionismo económico (ou determinismo mecânico, segundo Labriola) que permite Gramsci edificar seu conceito de hegemonia. Robert Bocock advoga que estas acepções são importantes para uma análise metodológica (para que seja viável sua análise teórica). Neste sentido, Gramsci não exclui a vertente económica, mas sim dá mais valor às questões culturais, políticas e sociais do cenário interno dos Estados (Bocock, 1986).



Referências

Arrighi, Giovanni (1993), ‘The three hegemonies of historical capitalism’ in Gill, Stephen ed. (1993), Gramsci, historical materialism and international relations, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 149-185.

Bocock, Robert (1986), Hegemony, London: Routledge.

Cox, Robert W (1983), ‘Gramsci, hegemony and international relations: an essay in method’ in Gill, Stephen ed. (1993), Gramsci, historical materialism and international relations, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 49-66.

Gill, Stephen (1993), ‘Gramsci and Global Politics: toward a post-hegemonic research agenda’ in Gill, Stephen ed. (1993), Gramsci, historical materialism and international relations, Cambridge: Cambridge University Press, pp 1-18.

Gill, Stephen (1993), ‘Epistemology, ontology and the “Italian School”’ in Gill, Stephen ed. (1993), Gramsci, historical materialism and international relations, Cambridge: Cambridge University Press, pp 21-48.

Houaiss, Instituto Antônio. 2001. "Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa." 1.0 Edition: Editora Objetiva Ltda.

Joseph, Jonathan (2002), Hegemony: a realist analysis, London: Routledge.

Joseph, Jonathan (2008), ‘Hegemony and the structure-agency problem in International Relations: a scientific realist contribution’ in Review of International Studies, vol. 34, pp.109-128.

Sem comentários: